Por Aline Torres.
O Brasil não é um só, mas uma parte de si é ódio. Entre 84 países, é o quinto que mais mata mulheres, é o 11° que mais mata jovens, principalmente, negros. Quase meio milhão de pessoas assassinadas nos últimos 13 anos. Indígena morre à bala, de fome, doença ou espera. No caso das trans, a minoria que, para uma parcela de líderes políticos e religiosos fere a moralidade e o manual papai e mamãe da família brasileira, o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking: é o país que mais mata transexuais no mundo. A cada 21 horas há um assassinato, segundo a ONG internacional TGEU (Trans Murder Monitor Project). Morre-se por tiros, facadas ou espancamento.
O grupo está agora mobilizado com um objetivo: deter a ânsia de 29 deputados que protocolaram um pedido de veto do uso do nome social das trans no serviço público federal. A movimentação começou na quarta-feira, um dia após a comemoração do Dia Internacional contra a Homofobia.
O decreto n°8727 que incentivava o uso do nome social foi assinado há um mês por Dilma Rousseff, dias antes que ela fosse afastada do cargo no processo de impeachment. A proposta de veto é de João Campos (PRB-GO), expoente da bancada evangélica, autor da proposta de Emenda à Constituição que garante às igrejas o poder de contestar a constitucionalidade de leis no Supremo Tribunal Federal. Além dele, assinam o documento o pastor Marcos Feliciano (PSC-SP) e Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), aliado próximo de Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Ao todo, 13 partidos estão envolvidos na empreitada.
A justificativa do deputado Campos é que Dilma Rousseff não tinha competência jurídica para assinar o decreto, expedido ao “ao apagar das luzes” do seu Governo. Ele explica que seu posicionamento não é afetado por suas opções religiosas e não é a primeira vez que ele age para tentar reverter outros projetos que atendem as trans. Em março do ano passado, o deputado fez parte do grupo que tentou derrubar a resolução do Conselho Nacional de Combate à Discriminação que prevê a adoção do chamado nome social em escolas e em concursos públicos. Assim como tentou obrigar que as trans usassem banheiros públicos de acordo com sua biologia.
"Eu não gostaria de morrer com aquela forma física"
Valentina Moreno Tubino, 36 anos, diz que "não tem uma história triste para contar" - se a rua foi a eleita pela sociedade como o único lugar onde uma transexual pode viver, ela é uma exceção: é casada, diplomada e bem sucedida nos negócios. Isso não apaga o calvário que atravessou até conseguir o que queria, inclusive o direito de usar o nome social que escolheu na universidade (no caso de uma transexual mulher, o nome social é seu nome feminino, diferente do registro civil masculino). Ép por isso que ela se opõe ao projeto: “A questão votada na Câmara é a ponta da mesma linha que faz com que uma trans seja assassinada a cada 21 horas no Brasil. É o mesmo espírito da violência, da exclusão. É a perpetuação da tentativa de nos deixar nas sombras”, critica.
Valentina tomou antidepressivos por 10 anos. As pílulas eram sua arma na luta contra a vontade de morrer. Valentina não queria existir porque o pai, a escola e a sociedade a fizeram pensar que era uma aberração. Valentina queria o suicídio porque é uma mulher, mas num deboche o espelho a mostrava como homem. Como homem os outros a viam e a chamavam. E ela desesperadamente chorava nos braços da mãe, “não é justo”, “não sou eu”, “não sou eu”. E quanto mais lágrimas caiam, mais a repressão paterna a estrangulava. Valentina deixou de existir.
Foi depois de um acidente aéreo, em janeiro de 2011, enquanto trabalhava como comissário de bordo, que ela resolveu se assumir. “Eu pensei que não gostaria de morrer com aquela forma física”, disse. Na intimidade, usava maquiagens, delicadezas do feminino. Quando ia às ruas se travestia do homem que não era. “Nesse momento batalhei pela minha maior conquista, a minha própria natureza”, disse.
Nela, ainda mora uma caixinha de memórias. Quando se vestiu de menina no jardim de infância e foi ridicularizada pela diretora e punida pelo pai. Quando, na adolescência, foi premiada pelos colegas da escola marista com o fardo dos pecados. Em uma peça teatral, atores iam sendo chamados ao palco. Representavam mendigos, prostitutas, assaltantes, transexuais, alcoólatras. Suas presenças engordavam um saco com isopor. O fardo dos pecados. Quando finalmente os párias estavam expostos e enfileirados, Valentina, que apenas assistia ao espetáculo, ganhou o fardo. E carregou para si.
Depois da decisão tomada, o primeiro passo foi a dieta hormonal, que a deixou mais emotiva, com TPM. O cabelo cresceu, ficou loiro, os lábios vermelhos, seios fartos, corpo torneado. “Tudo que eu queria era ter nascido mulher. As pessoas julgam as trans como sendo pervertidas, mas quem em sã consciência escolheria tanta hostilidade?”, questionou.
TRANStornos
A história de sucesso profissional de Valentina é uma exceção porque mercado de trabalho, em geral, repele as trans, e sobra a prostituição. Ofício dos marginalizados. A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) estima que 90% das trans sobrevivam do sexo.
“O serviço público poderia ser uma oportunidade, já que a competência é julgada através do concurso e não da aparência. Mas a bancada evangélica quer um mundo sem nós”, diz a ativista LGBT Daniela Siqueira. Pelo decreto de Dilma Rousseff, trans teriam direito de usar seu nome social se trabalhassem no serviço público, mesmo que não tivessem feito a mudança no RG. O nome escolhido seria usado em identificações visíveis, ainda que o do registro constasse dos documentos internos.
Em Florianópolis, onde Valentina vive, acontece a exposição Acessos e (In)diferenças. A mostra traz fotos de lugares que barram a entrada de trans na capital catarinense. Rodrigo Otávio Moretti, autor da mostra, e professor de pós-graduação sobre saúde LGBT, esclarece que não são apenas lugares comerciais que hostilizam as trans, mas também centros de saúde. Ele entende que a moralidade religiosa, na sua crença que os órgãos genitais definem o destino das pessoas, seja a origem do ódio. “Como essas pessoas não se enquadram nesses padrões, são vistas e tratadas como doentes, abjetas, monstruosas”, comentou. O Ministério da Saúde e o Conselho Federal de Medicina se guiam pelo manual de psiquiatria norte-americano para atender trans. No manual, a transexualidade é classificada como um distúrbio mental.
TRANSgressões
É por esse histórico de sucessivas violências que o uso do nome civil surge como um agravo à dor. “Tive que vencer a vergonha que a sociedade fez com que eu sentisse de mim. Tive que vencer o medo de parecer anormal. Não foi fácil, muitas se matam. Eu sempre fui discreta e agora não passo despercebida na rua. Mas, confesso meu alívio existencial. Converti meu corpo e minha vida. Por isso, a questão do nome machuca, entendo como escárnio, uma violência psicológica desnecessária”, reflete Valentina.
Valentina teve que brigar na Justiça para que a UNISUL (Universidade do Sul de Santa Catarina) tivesse a sensibilidade de não a chamar pelo nome civil. Nome morto. Diferente do IFSC (Instituto Federal de Santa Catarina), onde também estuda, que foi uma das primeiras instituições do Brasil a aceitar o uso do nome social. Na matrícula, na chamada, na cerimônia de formatura e em todos os canais de relacionamento os alunos são chamados pelos nomes que escolheram para si. Com esta aceitação, o professor do IFSC Lino Gabriel dos Santos pode assumir sua transexualidade e optar por esse nome como uma definição apropriada do seu gênero.
“A sociedade ocidental concretizou um tipo humano, o paradigmático, ou seja, ele virou o paradigma, o símbolo do que é ser humano. Esse ser humano é macho, plenamente hábil no físico e no mental, heterossexual e branco. E tudo aquilo que não é isso, é menos humano, portanto tem menos direito”, explica a professora de filosofia do IFSC, pesquisadora de singularidade, Patrícia Rosa. Para a filósofa, as pessoas confundem sexo biológico com gênero. “O gênero é uma construção social, uma série de normas que determinam como as pessoas que têm vagina devem se portar, se vestir e pensar. Igualmente as pessoas que têm pênis. Só que nem todas as pessoas seguem essa norma. Não é por isso que elas perdem sua humanidade”, concluiu.
Para o advogado Paulo Euclides Marques, a violência contra as trans poderia ser amenizada como uma desburocratização na troca do nome civil. “As pessoas poderiam fazer a troca no cartório, um processo administrativo simples”, disse Paulo, que é casado com Valentina e atende voluntariamente trans que lutam pelo direito ao nome. Há um projeto de 2013, apresentado por Jean Wyllys (Psol-RJ) e Érica Cocay (PT-DF), que defende essa facilitação. O texto virou a bandeira da Parada LGBT 2016 de São Paulo, neste domingo.
Um das suas clientes de Paulo é Fabrizia de Souza Felipe, secretaria executiva da ADEH (Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade), que atua há 23 anos em Santa Catarina. Mesmo conhecendo todos os trâmites e sendo ativa na militância, ela espera a troca desde 2011. Outras 90 trans aguardam pelo direito ao nome apenas em Florianópolis.
O processo de Fabrizia está trancado na mesa do promotor Henrique Limongi, que foi alvo de um procedimento do Conselho Nacional de Justiça em agosto de 2013, por impedir o casamento entre homossexuais, mesmo sendo um direito assegurado. O relatório escreve que “em mais de uma decisão o promotor se baseou na Constituição ao afirmar que a entidade familiar é composta entre homem e mulher”. “O nome social é uma migalha que nos negam. A troca do nome civil deveria ser o primeiro direito dado a uma pessoa trans. Mas, enquanto elegermos deputados pastores em um estado que se afirma laico teremos nossa existência apagada”, disse Fabrizia.
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