“Talvez as palavras que te digo
me transpareçam classe,
talvez nem te devesse dizer nada.
Porque és a mão que ampara o meu silêncio,
a minha filha, o meu cansaço
— à custa do teu cansaço, da tua filha,
do teu silêncio”
O trecho
da poesia “Desculpe-me a ternura” revela um pouco da visão de mundo da poetisa
portuguesa Ana Luísa Amaral no olhar com afeto e, certo embaraço, para a mulher
trabalhadora que lhe dedica cuidados. Para a escritora, falar de feminismo é
também falar de luta de classes e de todas as outras formas de opressão. Pesquisadora
feminista da Faculdade de Letras do Porto e autora de 16 livros e sete traduções, Ana Luísa tem intimidade com o
texto lírico e o faz também de forma política. “Falar sobre árvores (parte
de um poema de Bertolt Brecht) é a expressão mais perfeita do lírico. É preciso
recuperar o lirismo, aquele mais inútil e, assim, mais fundamental”, afirma.
Recentemente,
ela participou de uma aula aberta sobre
linguagens e estudos de gênero e do minicurso Gênero, Sexo e Sexualidades, realizados pela UFSC. Hoje, segunda-feira (30/5), lança o romance
Ara, no Centro de Comunicação e Expressão, às 16h. O evento será de leituras de
poemas, autógrafos e performance das Desamordaçadas. Durante as atividades, a
poetisa concedeu uma entrevista ao Portal Catarinas sobre o feminismo e a onda
conservadora que avança sobre o mundo e ameaça direitos conquistados.
Quando se fala em discriminação, é preciso ir além da questão da classe?
O feminismo é uma forma de ampliar o olhar sobre a opressão?
Sim. Está tudo ligado. Ao
falar de discriminação não podemos falar somente em classe. Esse é um dos
grandes erros da esquerda ortodoxa, mais conservadora: resumir a opressão à
luta de classes. No meu país, durante os anos 70 achou-se que era possível
falar em luta de classes extinguindo a luta das mulheres, como se o feminismo
não fosse importante diante de algo mais crucial que é a luta de classes. Judith Butler tem
uma bela declaração: eu me recuso a categorizar discriminações. E eu também.
Não posso dizer que a discriminação de classes é mais importante que a de
gênero, ou da sexualidade Tudo está interligado. Quando temos governos de
direita, eles atacam em todos os níveis, da sexualidade, do gênero, da
sustentabilidade. Apoiado por organizações extremamente racistas, o candidato à presidência dos EUA, Donald Trump, por exemplo, diz que o buraco de ozônio é uma invenção.
O que explica e está por trás dessa onda conservadora que avança no
mundo?
A palavra chave é o
capitalismo, ele é um polvo, com vários tentáculos e faces, uma delas é a
democracia. O neoliberalismo instala-se e, como vivemos aparentemente numa
democracia, onde há partidos, pensamos que é possível lutar. Parafraseando o
filósofo francês Frantz Fanon “não há pessoas não racistas, só há racistas e
tolerantes ao racismo, sendo essas últimas as piores”. É mais fácil combater o
discurso visível, do que um discurso de intolerância que é oculto. O capitalismo
esconde-se por trás da democracia, ou seja ‘eu posso lutar, então porque me
queixar?' O sistema tem formas de construir estruturas de organização que
contrariam a ideia de liberdade.
Recentemente a legalização do aborto foi revista na Espanha. Você diz
que pensava não ser possíveis retrocessos como esse. Como você avalia a
situação do Brasil, em que o presidente interino além de excluir ministérios
importantes, faz novas nomeações sem a participação representativa da
sociedade?
Lembro de uma palavra na
tragédia grega que significa soberba: essa possibilidade das pessoas fazerem
tudo. Esse governo acha-se no direito de poder ter somente ministros homens
brancos, ignorando fatias imensas da população, especialmente as mulheres que formam
a metade. As conquistas são sim reversíveis. É necessário cuidar diariamente daquilo que temos de
frágil que são a liberdade e a democracia. Não podemos baixar os braços. O
capitalismo vai crescendo de diferentes maneiras. Em Portugal nos confiamos
demais nas nossas conquistas. A crise avançou e o país ficou destruído em
termos de conquistas sociais. Precisamos zelar por esse equilíbrio muito
precário que é a liberdade e a democracia. Outra questão importante é o voto,
os jovens têm que votar. Aqui no Brasil é obrigatório, mas na Europa não. A
abstenção é altíssima nos países europeus. Isso é preocupante! Os movimentos sociais
são cada vez mais necessários. As pessoas deixaram de acreditar nos partidos
políticos que estão conluiados com as chamadas indústrias financeiras. É
importante construir movimentos sociais. Aquela manifestação recente que levou
mulheres às ruas de São Paulo é importantíssima. É necessário que as pessoas
não se calem.
O feminismo nasce num campo de esquerda. Qual o lugar de partida, onde
se situa o movimento feminista?
O lugar está na base dos
próprios movimentos LGBT, queer, transexual e todos os que se
preocupam com a discriminação. Se fosse possível sumarizar, eu diria que a luta
do feminismo é pelos direitos humanos e direitos desse planeta em que vivemos.
Nó temos somente um planeta. Uma matéria recente diz que Nova Iorque estará
alagada em 2060. Quando falo em feminismo falo também no respeito à
diversidade.
A direita utiliza-se de um discurso em defesa das liberdades
individuais, no entanto o que se vê com o avanço do conservadorismo no mundo é
uma tentativa de controle sobre a vida das pessoas. No Brasil, parlamentares
buscaram definir até mesmo o conceito de família, numa posição contrária à
união homoafetiva. Como você vê essa contradição?
O individualismo está ligado
à questão econômica. Tão aperfeiçoado nos Estados Unidos, ele pautou a
construção da América. Um exemplo é a criação de impostos por Donald Trump e o
partido republicano. Se eu não tenho filhos porque terei que pagar impostos
para a educação? Isso é pensar em mim somente e não em comunidade. A ideia de
comunidade - e o dever de proteger o mais frágil, é algo estranho para o
capitalismo. Há uma precariedade comum a todos, como diz Butler "nascemos e
morremos e somos todos frágeis", precisamos uns dos outros. O capitalismo tenta
nos impor a precariedade social. Essa ideia de direitos individuais está
ligada, sobretudo, à questão econômica, ao direito à propriedade.
“Meu corpo me pertence” e “meu corpo, minhas regras” são lemas do
movimento feminista em defesa da redução do poder do Estado sobre o corpo das
mulheres. No entanto, a direita brasileira, defensora do Estado mínimo e das
liberdades individuais, se posiciona contra pautas feministas, especialmente a
legalização do aborto. Como você avalia essa contradição?
É estranhíssima a ideia de o
homem ter o direito de dizer se a mulher pode ou não interromper a gravidez. Eu
acho que abstratamente o homem até pode dizer algo, mas a última palavra é da
mulher. Se a mulher quiser abortar, só se atarem os pés e as mãos a uma cama
durante nove meses, por que ela tentará tudo que estiver ao seu alcance.
Portanto, de fato, essa coisa de que o corpo é meu e me pertence não é
retórica, é verdade. Quem tem a criança e traz por nove meses na barriga é a
mulher e não o homem.
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