terça-feira, 31 de maio de 2016

"A culpa do estupro é do estuprador" gritam manifestantes em Florianópolis




Texto de Paula Guimarães.
Fotos de Clarissa Peixoto.

O estupro é culpa de quem? Do estuprador!”, gritaram as centenas de manifestantes que saíram às ruas do centro de Florianópolis, ontem (30/5), para protestar contra a cultura do estupro. 


Organizado pela Marcha das Vadias, o ato "Por todas elas" teve concentração no "Ocupa Minc SC" com oficinas artísticas e discussão sobre a condição da mulher na sociedade atual. “Ele me disse 'eu sou mais forte’. Mas, quando ele está dormindo, eu sou a mais forte”, disse uma das participantes das oficinas. 








Elas marcharam até a escada da catedral, onde oportunamente pediram pelo fim da interferência da igreja nas questões do Estado. Reunidas na escadaria da igreja, contaram juntas até o número 33 como forma de protesto ao estupro coletivo contra uma jovem de 16 anos, no Rio de Janeiro. “Viemos para afirmar que os projetos de retrocesso não vão passar e a cultura do estupro tem que acabar”, diz Kali Turrer da Marcha das Vadias.


Segundo Kali, a construção de uma sociedade sem violência contra mulheres só será possível com um ensino que promova a equidade de gênero. “Precisamos discutir o gênero na educação. A gente aprende desde cedo a oprimir e não respeitar os colegas. É dever da sociedade como um todo incluir o gênero nas discussões”, afirma. 



Enquanto na cultura do estupro, “puta” é um xingamento ou até argumento para culpabilizar vítimas de violência sexual, algumas manifestantes consideram a palavra um elogio. “As putas foram as primeiras revolucionárias da história. Elas não tinham voz. Saíram de casa, negaram a maternidade romantizada e todo o papel que a sociedade impõe. Restou a prostituição”, diz a doula Fernanda Nunes. 



O assistente social, Kawe Campolio estava entre os poucos homens que apoiaram o ato. “Apoio porque os agressores somos nós. Enquanto houver exploração de classe vai haver de gênero. A luta das mulheres ajuda a transformar essa sociedade desigual. É difícil imaginar a mudança sem a participação das mulheres”, afirma.



Marcelle Costa Oliveira, integrante do coletivo artístico Desamordaçadas e da Batalha do Rap das Minas, conta que fica indignada com a forma que a mídia costuma tratar os casos de estupro. “A manchete de jornal diz ‘suspeita de estupro’. A mídia sempre quer culpabilizar a vítima. Isso me deixa engasgada. Se tava bêbada, drogada, de saia curta, nada pode servir de justificativa. Temos que nos unir e colocar isso na arte e na luta”, diz.

Marcelle escreve poesias marginais, a maioria sobre a discriminação contra as mulheres. “Minha inspiração surge no cotidiano e o meu cotidiano, como de todas as mulheres, é marcado pelo machismo gritante que fica nos esmagando o tempo todo. A cultura do estupro começa em casa.”

Estupro coletivo
A delegada Cristiana Bento, responsável pelo caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro, afirmou que as imagens do vídeo são suficientes para provar a violência sexual. "Está lá no vídeo, que mostra um rapaz manipulando a menina. O que eu quero agora é verificar a extensão desse estupro, quantas pessoas praticaram esse crime", disse a delegada. Em 2009, a lei 12.015 sobre violência sexual foi alterada e passou a considerar, além da conjunção carnal, atos libidinosos como crime de estupro. "Como ela estava desacordada, não vai haver lesão porque ela não ofereceu resistência. Por isso o laudo não é determinante", afirmou a delegada (entrevista
aqui). 






segunda-feira, 30 de maio de 2016

TransBrasil, o país dos sem nome



Por Aline Torres.

O Brasil não é um só, mas uma parte de si é ódio. Entre 84 países, é o quinto que mais mata mulheres, é o 11° que mais mata jovens, principalmente, negros. Quase meio milhão de pessoas assassinadas nos últimos 13 anos. Indígena morre à bala, de fome, doença ou espera. No caso das trans, a minoria que, para uma parcela de líderes políticos e religiosos fere a moralidade e o manual papai e mamãe da família brasileira, o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking: é o país que mais mata transexuais no mundo. A cada 21 horas há um assassinato, segundo a ONG internacional TGEU (Trans Murder Monitor Project). Morre-se por tiros, facadas ou espancamento.

O grupo está agora mobilizado com um objetivo: deter a ânsia de 29 deputados que protocolaram um pedido de veto do uso do nome social das trans no serviço público federal. A movimentação começou na quarta-feira, um dia após a comemoração do Dia Internacional contra a Homofobia.

O decreto n°8727 que incentivava o uso do nome social foi assinado há um mês por Dilma Rousseff, dias antes que ela fosse afastada do cargo no processo de impeachment. A proposta de veto é de João Campos (PRB-GO), expoente da bancada evangélica, autor da proposta de Emenda à Constituição que garante às igrejas o poder de contestar a constitucionalidade de leis no Supremo Tribunal Federal. Além dele, assinam o documento o pastor Marcos Feliciano (PSC-SP) e Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), aliado próximo de Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Ao todo, 13 partidos estão envolvidos na empreitada.

A justificativa do deputado Campos é que Dilma Rousseff não tinha competência jurídica para assinar o decreto, expedido ao “ao apagar das luzes” do seu Governo. Ele explica que seu posicionamento não é afetado por suas opções religiosas e não é a primeira vez que ele age para tentar reverter outros projetos que atendem as trans. Em março do ano passado, o deputado fez parte do grupo que tentou derrubar a resolução do Conselho Nacional de Combate à Discriminação que prevê a adoção do chamado nome social em escolas e em concursos públicos. Assim como tentou obrigar que as trans usassem banheiros públicos de acordo com sua biologia.
"Eu não gostaria de morrer com aquela forma física"

Valentina Moreno Tubino, 36 anos, diz que "não tem uma história triste para contar" - se a rua foi a eleita pela sociedade como o único lugar onde uma transexual pode viver, ela é uma exceção: é casada, diplomada e bem sucedida nos negócios. Isso não apaga o calvário que atravessou até conseguir o que queria, inclusive o direito de usar o nome social que escolheu na universidade (no caso de uma transexual mulher, o nome social é seu nome feminino, diferente do registro civil masculino). Ép por isso que ela se opõe ao projeto: “A questão votada na Câmara é a ponta da mesma linha que faz com que uma trans seja assassinada a cada 21 horas no Brasil. É o mesmo espírito da violência, da exclusão. É a perpetuação da tentativa de nos deixar nas sombras”, critica.

Valentina tomou antidepressivos por 10 anos. As pílulas eram sua arma na luta contra a vontade de morrer. Valentina não queria existir porque o pai, a escola e a sociedade a fizeram pensar que era uma aberração. Valentina queria o suicídio porque é uma mulher, mas num deboche o espelho a mostrava como homem. Como homem os outros a viam e a chamavam. E ela desesperadamente chorava nos braços da mãe, “não é justo”, “não sou eu”, “não sou eu”. E quanto mais lágrimas caiam, mais a repressão paterna a estrangulava. Valentina deixou de existir.

Foi depois de um acidente aéreo, em janeiro de 2011, enquanto trabalhava como comissário de bordo, que ela resolveu se assumir. “Eu pensei que não gostaria de morrer com aquela forma física”, disse. Na intimidade, usava maquiagens, delicadezas do feminino. Quando ia às ruas se travestia do homem que não era. “Nesse momento batalhei pela minha maior conquista, a minha própria natureza”, disse.

Nela, ainda mora uma caixinha de memórias. Quando se vestiu de menina no jardim de infância e foi ridicularizada pela diretora e punida pelo pai. Quando, na adolescência, foi premiada pelos colegas da escola marista com o fardo dos pecados. Em uma peça teatral, atores iam sendo chamados ao palco. Representavam mendigos, prostitutas, assaltantes, transexuais, alcoólatras. Suas presenças engordavam um saco com isopor. O fardo dos pecados. Quando finalmente os párias estavam expostos e enfileirados, Valentina, que apenas assistia ao espetáculo, ganhou o fardo. E carregou para si.

Depois da decisão tomada, o primeiro passo foi a dieta hormonal, que a deixou mais emotiva, com TPM. O cabelo cresceu, ficou loiro, os lábios vermelhos, seios fartos, corpo torneado. “Tudo que eu queria era ter nascido mulher. As pessoas julgam as trans como sendo pervertidas, mas quem em sã consciência escolheria tanta hostilidade?”, questionou.
TRANStornos

A história de sucesso profissional de Valentina é uma exceção porque mercado de trabalho, em geral, repele as trans, e sobra a prostituição. Ofício dos marginalizados. A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) estima que 90% das trans sobrevivam do sexo.

“O serviço público poderia ser uma oportunidade, já que a competência é julgada através do concurso e não da aparência. Mas a bancada evangélica quer um mundo sem nós”, diz a ativista LGBT Daniela Siqueira. Pelo decreto de Dilma Rousseff, trans teriam direito de usar seu nome social se trabalhassem no serviço público, mesmo que não tivessem feito a mudança no RG. O nome escolhido seria usado em identificações visíveis, ainda que o do registro constasse dos documentos internos.

Em Florianópolis, onde Valentina vive, acontece a exposição Acessos e (In)diferenças. A mostra traz fotos de lugares que barram a entrada de trans na capital catarinense. Rodrigo Otávio Moretti, autor da mostra, e professor de pós-graduação sobre saúde LGBT, esclarece que não são apenas lugares comerciais que hostilizam as trans, mas também centros de saúde. Ele entende que a moralidade religiosa, na sua crença que os órgãos genitais definem o destino das pessoas, seja a origem do ódio. “Como essas pessoas não se enquadram nesses padrões, são vistas e tratadas como doentes, abjetas, monstruosas”, comentou. O Ministério da Saúde e o Conselho Federal de Medicina se guiam pelo manual de psiquiatria norte-americano para atender trans. No manual, a transexualidade é classificada como um distúrbio mental.
TRANSgressões

É por esse histórico de sucessivas violências que o uso do nome civil surge como um agravo à dor. “Tive que vencer a vergonha que a sociedade fez com que eu sentisse de mim. Tive que vencer o medo de parecer anormal. Não foi fácil, muitas se matam. Eu sempre fui discreta e agora não passo despercebida na rua. Mas, confesso meu alívio existencial. Converti meu corpo e minha vida. Por isso, a questão do nome machuca, entendo como escárnio, uma violência psicológica desnecessária”, reflete Valentina.

Valentina teve que brigar na Justiça para que a UNISUL (Universidade do Sul de Santa Catarina) tivesse a sensibilidade de não a chamar pelo nome civil. Nome morto. Diferente do IFSC (Instituto Federal de Santa Catarina), onde também estuda, que foi uma das primeiras instituições do Brasil a aceitar o uso do nome social. Na matrícula, na chamada, na cerimônia de formatura e em todos os canais de relacionamento os alunos são chamados pelos nomes que escolheram para si. Com esta aceitação, o professor do IFSC Lino Gabriel dos Santos pode assumir sua transexualidade e optar por esse nome como uma definição apropriada do seu gênero.

“A sociedade ocidental concretizou um tipo humano, o paradigmático, ou seja, ele virou o paradigma, o símbolo do que é ser humano. Esse ser humano é macho, plenamente hábil no físico e no mental, heterossexual e branco. E tudo aquilo que não é isso, é menos humano, portanto tem menos direito”, explica a professora de filosofia do IFSC, pesquisadora de singularidade, Patrícia Rosa. Para a filósofa, as pessoas confundem sexo biológico com gênero. “O gênero é uma construção social, uma série de normas que determinam como as pessoas que têm vagina devem se portar, se vestir e pensar. Igualmente as pessoas que têm pênis. Só que nem todas as pessoas seguem essa norma. Não é por isso que elas perdem sua humanidade”, concluiu.

Para o advogado Paulo Euclides Marques, a violência contra as trans poderia ser amenizada como uma desburocratização na troca do nome civil. “As pessoas poderiam fazer a troca no cartório, um processo administrativo simples”, disse Paulo, que é casado com Valentina e atende voluntariamente trans que lutam pelo direito ao nome. Há um projeto de 2013, apresentado por Jean Wyllys (Psol-RJ) e Érica Cocay (PT-DF), que defende essa facilitação. O texto virou a bandeira da Parada LGBT 2016 de São Paulo, neste domingo.

Um das suas clientes de Paulo é Fabrizia de Souza Felipe, secretaria executiva da ADEH (Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade), que atua há 23 anos em Santa Catarina. Mesmo conhecendo todos os trâmites e sendo ativa na militância, ela espera a troca desde 2011. Outras 90 trans aguardam pelo direito ao nome apenas em Florianópolis.

O processo de Fabrizia está trancado na mesa do promotor Henrique Limongi, que foi alvo de um procedimento do Conselho Nacional de Justiça em agosto de 2013, por impedir o casamento entre homossexuais, mesmo sendo um direito assegurado. O relatório escreve que “em mais de uma decisão o promotor se baseou na Constituição ao afirmar que a entidade familiar é composta entre homem e mulher”. “O nome social é uma migalha que nos negam. A troca do nome civil deveria ser o primeiro direito dado a uma pessoa trans. Mas, enquanto elegermos deputados pastores em um estado que se afirma laico teremos nossa existência apagada”, disse Fabrizia.

Evento discute “Jovens e reXistências: cidades, histórias e lutas”, em Florianópolis




Programação traz lançamento de livro, documentário, intervenções culturais, e conversas com “Minas da Batalha do RAP” e o “Grupo E.T.C.”




Na próxima quarta-feira, 1º de junho, acontece o evento “Jovens e reXistências: cidades, histórias e lutas”, no auditório do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH), na UFSC, em Florianópolis. Na programação, estão previstas intervenções culturais, exibição de documentário e o lançamento do livro “Jovens, Política(s), Cidade(s): diálogos na urbe e suas (im)possibilidades”, escrito pela pesquisadora e psicóloga social, Josiele Bené Lahorgue. Ao final do encontro terá uma bate-papo com a autora e com jovens representantes das “Minas da Batalha do RAP” e do “Grupo E.T.C.”.

Gratuito e aberto ao público, o evento é uma parceria entre o Núcleo Floripa da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), os Núcleos de Pesquisa Margens e NUPRA da UFSC e a Liquidificador Comunicação e Arte. 




Sobre o livro

O livro é resultado da pesquisa de mestrado da autora Josiele Bené Lahorgue, realizada com os jovens da cidade de Jaraguá do Sul, interior de Santa Catarina, de maio a junho de 2013. “O tema está relacionado às vivências das cidades pelos jovens, à forma como se apropriam e ressignificam os espaços públicos e, a partir desta relação que estabelecem com a cidade, discutir a forma como esses jovens têm pensado a política, de que forma vêm se posicionando politicamente e como caracterizam esse conceito”, explica.


Para a autora, pesquisar os jovens em suas relações com a cidade permite compreender como eles têm participado da vida pública no País. “Desde 2013, quando essa pesquisa se realizou, até os dias atuais, muitas são as formas que os jovens têm encontrado de reivindicarem seus espaços na urbe. Reivindicações que escapam às lógicas tradicionais de pensar a política e que engendram outras possibilidades de compreendê-la e vivenciá-la. Os jovens continuam resistindo para conseguirem existir nas cidades. Resistem na existência e existem na resistência”, destaca.

O livro foi publicado pelo selo editorial Liquidificador, com projeto gráfico de Aline Assumpção e Charles Steuck, e ilustrações do artista Galvão Bertazzi. A publicação foi viabilizada com o apoio do Estado de Santa Catarina, da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte, da Fundação Catarinense de Cultura, através do FUNCULTURAL e do Edital Elisabete Anderle.



A autora

Josiele Bené Lahorgue é doutoranda em Psicologia no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC, vinculada ao Núcleo de Pesquisa em Práticas Sociais: relações éticas, estéticas e processos de criação (NUPRA /UFSC). Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia – UFSC (2014). Formada em Psicologia pela Universidade Regional de Blumenau (FURB) em 2006.


Em suas pesquisas, tem entrelaçado discussões sobre os seguintes temas: experiência coletiva, comunicação, ativismo digital, jovens, política(s), cidade(s), processos de criação, dialogia, relações éticas e estéticas. Dirigiu os documentários: “SOFIA BATUTA apresenta: Catarina Maçaroca” e “(Im)possibilidades: circuitos dos jovens em Jaraguá do Sul”. Desenvolve projetos de formação e capacitação em políticas públicas e música na educação especial e inclusiva.

Programação:
18h30 – Intervenção cultural
19h – Café e Lançamento do Livro Jovens, política(s), cidade(s): diálogos na urbe e sua (Im)possibilidades
19h30 – Exibição do documentário: (Im)possibilidades: circuitos dos Jovens de Jaraguá do Sul
20h: Conversando com…
. Minas da Batalha do RAP
. Grupo E.T.C.
Local: Auditório do CFH/UFSC Florianópolis






“Eu me recuso a categorizar discriminações”, diz a escritora portuguesa Ana Luísa Amaral


“Talvez as palavras que te digo
me transpareçam classe,
talvez nem te devesse dizer nada.
Porque és a mão que ampara o meu silêncio,
a minha filha, o meu cansaço
— à custa do teu cansaço, da tua filha,
do teu silêncio”

O trecho da poesia “Desculpe-me a ternura” revela um pouco da visão de mundo da poetisa portuguesa Ana Luísa Amaral no olhar com afeto e, certo embaraço, para a mulher trabalhadora que lhe dedica cuidados. Para a escritora, falar de feminismo é também falar de luta de classes e de todas as outras formas de opressão. Pesquisadora feminista da Faculdade de Letras do Porto e autora de 16 livros e sete traduções, Ana Luísa tem intimidade com o texto lírico e o faz também de forma política. “Falar sobre árvores (parte de um poema de Bertolt Brecht) é a expressão mais perfeita do lírico. É preciso recuperar o lirismo, aquele mais inútil e, assim, mais fundamental”, afirma.

Recentemente, ela participou de uma aula aberta sobre linguagens e estudos de gênero e do minicurso Gênero, Sexo e Sexualidades, realizados pela UFSC. Hoje, segunda-feira (30/5), lança o romance Ara, no Centro de Comunicação e Expressão, às 16h. O evento será de leituras de poemas, autógrafos e performance das Desamordaçadas. Durante as atividades, a poetisa concedeu uma entrevista ao Portal Catarinas sobre o feminismo e a onda conservadora que avança sobre o mundo e ameaça direitos conquistados.

Quando se fala em discriminação, é preciso ir além da questão da classe? O feminismo é uma forma de ampliar o olhar sobre a opressão?
Sim. Está tudo ligado. Ao falar de discriminação não podemos falar somente em classe. Esse é um dos grandes erros da esquerda ortodoxa, mais conservadora: resumir a opressão à luta de classes. No meu país, durante os anos 70 achou-se que era possível falar em luta de classes extinguindo a luta das mulheres, como se o feminismo não fosse importante diante de algo mais crucial que é a luta de classes. Judith Butler tem uma bela declaração: eu me recuso a categorizar discriminações. E eu também. Não posso dizer que a discriminação de classes é mais importante que a de gênero, ou da sexualidade Tudo está interligado. Quando temos governos de direita, eles atacam em todos os níveis, da sexualidade, do gênero, da sustentabilidade. Apoiado por organizações extremamente racistas, o candidato à presidência dos EUA, Donald Trump, por exemplo, diz que o buraco de ozônio é uma invenção. 

O que explica e está por trás dessa onda conservadora que avança no mundo?
A palavra chave é o capitalismo, ele é um polvo, com vários tentáculos e faces, uma delas é a democracia. O neoliberalismo instala-se e, como vivemos aparentemente numa democracia, onde há partidos, pensamos que é possível lutar. Parafraseando o filósofo francês Frantz Fanon “não há pessoas não racistas, só há racistas e tolerantes ao racismo, sendo essas últimas as piores”. É mais fácil combater o discurso visível, do que um discurso de intolerância que é oculto. O capitalismo esconde-se por trás da democracia, ou seja ‘eu posso lutar, então porque me queixar?' O sistema tem formas de construir estruturas de organização que contrariam a ideia de liberdade.

Recentemente a legalização do aborto foi revista na Espanha. Você diz que pensava não ser possíveis retrocessos como esse. Como você avalia a situação do Brasil, em que o presidente interino além de excluir ministérios importantes, faz novas nomeações sem a participação representativa da sociedade?
Lembro de uma palavra na tragédia grega que significa soberba: essa possibilidade das pessoas fazerem tudo. Esse governo acha-se no direito de poder ter somente ministros homens brancos, ignorando fatias imensas da população, especialmente as mulheres que formam a metade. As conquistas são sim reversíveis. É necessário cuidar diariamente daquilo que temos de frágil que são a liberdade e a democracia. Não podemos baixar os braços. O capitalismo vai crescendo de diferentes maneiras. Em Portugal nos confiamos demais nas nossas conquistas. A crise avançou e o país ficou destruído em termos de conquistas sociais. Precisamos zelar por esse equilíbrio muito precário que é a liberdade e a democracia. Outra questão importante é o voto, os jovens têm que votar. Aqui no Brasil é obrigatório, mas na Europa não. A abstenção é altíssima nos países europeus. Isso é preocupante! Os movimentos sociais são cada vez mais necessários. As pessoas deixaram de acreditar nos partidos políticos que estão conluiados com as chamadas indústrias financeiras. É importante construir movimentos sociais. Aquela manifestação recente que levou mulheres às ruas de São Paulo é importantíssima. É necessário que as pessoas não se calem.

O feminismo nasce num campo de esquerda. Qual o lugar de partida, onde se situa o movimento feminista?
O lugar está na base dos próprios movimentos LGBT, queer, transexual e todos os que se preocupam com a discriminação. Se fosse possível sumarizar, eu diria que a luta do feminismo é pelos direitos humanos e direitos desse planeta em que vivemos. Nó temos somente um planeta. Uma matéria recente diz que Nova Iorque estará alagada em 2060. Quando falo em feminismo falo também no respeito à diversidade.

A direita utiliza-se de um discurso em defesa das liberdades individuais, no entanto o que se vê com o avanço do conservadorismo no mundo é uma tentativa de controle sobre a vida das pessoas. No Brasil, parlamentares buscaram definir até mesmo o conceito de família, numa posição contrária à união homoafetiva. Como você vê essa contradição?
O individualismo está ligado à questão econômica. Tão aperfeiçoado nos Estados Unidos, ele pautou a construção da América. Um exemplo é a criação de impostos por Donald Trump e o partido republicano. Se eu não tenho filhos porque terei que pagar impostos para a educação? Isso é pensar em mim somente e não em comunidade. A ideia de comunidade - e o dever de proteger o mais frágil, é algo estranho para o capitalismo. Há uma precariedade comum a todos, como diz Butler "nascemos e morremos e somos todos frágeis", precisamos uns dos outros. O capitalismo tenta nos impor a precariedade social. Essa ideia de direitos individuais está ligada, sobretudo, à questão econômica, ao direito à propriedade.

“Meu corpo me pertence” e “meu corpo, minhas regras” são lemas do movimento feminista em defesa da redução do poder do Estado sobre o corpo das mulheres. No entanto, a direita brasileira, defensora do Estado mínimo e das liberdades individuais, se posiciona contra pautas feministas, especialmente a legalização do aborto. Como você avalia essa contradição?
É estranhíssima a ideia de o homem ter o direito de dizer se a mulher pode ou não interromper a gravidez. Eu acho que abstratamente o homem até pode dizer algo, mas a última palavra é da mulher. Se a mulher quiser abortar, só se atarem os pés e as mãos a uma cama durante nove meses, por que ela tentará tudo que estiver ao seu alcance. Portanto, de fato, essa coisa de que o corpo é meu e me pertence não é retórica, é verdade. Quem tem a criança e traz por nove meses na barriga é a mulher e não o homem. 

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Onde há machismo, há estupro


Uma mulher é vítima de estupro a cada 11 minutos no Brasil, conforme o último Relatório Brasileiro de Segurança Pública de 2015. Porém, se os dados de saúde foram incorporados, pode-se dizer que uma mulher é vítima de estupro a cada minuto. Santa Catarina, que já ocupou a terceira posição em estupros no país, é atualmente o quinto estado em duas situações, tanto em números absolutos de ocorrências, 2.878 casos, quanto nas maiores taxas de estupro para cada 100 mil habitantes, com índice de 42.8%. A quantidade de vítimas, porém pode ser muito maior, se levarmos em conta que os casos geralmente são subnotificados.

Duas mulheres jovens de idades muito próximas foram vítimas de estupro coletivo quase no mesmo dia, nos estados do Piauí e no Rio de Janeiro. Há um ano, também no Piauí, quatro adolescentes foram estupradas torturadas e tiveram seus corpos mutilados, uma delas morreu.

Não estamos na Índia, tampouco no Paquistão. Estupros coletivos acontecem no Brasil e no mundo. Onde há “machos” há estupro, piadas sobre estupro, feminicídio, culpabilização da vítima, violência doméstica, criminalização do aborto e formas visíveis e invisíveis de domesticar, controlar e violar os corpos das mulheres. Isso porque numa sociedade patriarcal mulheres são propriedades dos homens, do Estado e da igreja _ sendo esses dois últimos também dominados por homens.

O estupro é a exacerbação de toda uma violação cotidiana, permitida, banalizada e naturalizada de tal forma que se torna imperceptível. O estupro não se encerra no ato. Ele persiste no questionamento sobre a “índole” da vítima. De acordo com a roupa que a mulher usava, seus hábitos e comportamentos, é possível para essa sociedade deduzir facilmente que ela se insinuou ou, no mínimo, se expôs ao risco. Apesar de ter mais de 200 anos, o perfil “bela, recatada e do lar” ainda é o filtro que define as que merecem ou não serem estupradas no Brasil.

Os casos de estupro coletivo, especialmente do Rio de Janeiro, “chocam o Brasil” - como trata a mídia. Os ânimos ficam à flor da pele, alguns pedem execração em praça pública, outros tratam logo de se distinguir dos “machos” que estupram - porém sem abdicar de sua macheza, afinal, ela é mantenedora de sua dignidade, enquanto ser viril.

Catarinas se solidariza com essas vítimas e questiona: não havia um homem entre os 33, capaz de um gesto de humanidade? A resposta dada pelos fatos reforça a ideia do coleguismo entre machistas incapazes de refletir sobre sua condição, em especial no momento de domar e humilhar sua “fêmea”.

O machismo eleva o homem a um patamar de poder e supremacia sobre as mulheres. Para essa cultura, homens têm instintos incontroláveis, especialmente sexuais. Esses são rudes e não choram. Não brincam de boneca. São feitos para a guerra. Não lavam a louça e não cuidam de crianças. São servidos na casa e na cama. Forçam suas mulheres a manterem relações sexuais, mesmo sem o desejo delas. Acham justo que possam ter relações extraconjugais, assim como aceitam, mesmo que veladamente, a morte de mulheres por seus maridos numa situação de relacionamento extra-conjugal.

Foto: Marcela Cornelli

Não incluir o gênero no ensino das escolas é uma forma de não interferir na formação desses homens misóginos e machistas e, assim na sociedade que aceita a cultura do estupro. A Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres, adotada pela resolução da Assembleia Geral da ONU em 1979, e ratificada pelo Brasil em 1984 reconhece que “é necessário modificar o papel tradicional tanto do homem, quanto da mulher na sociedade e na família”. Uma das medidas acordadas é a “eliminação de todo conceito estereotipado dos papéis masculino e feminino em todos os níveis e em todas as formas de ensino”.

Outros acordos se seguiram em esforços mundiais para eliminar todas as formas de discriminação. Recentemente, os países membros da ONU se comprometeram em garantir a igualdade de gênero com a implementação da Agenda 2030.

Mesmo tendo assinado e se comprometido com os documentos, o Brasil está na contramão. Além de não pautar o ensino, a perspectiva de gênero foi eliminada até mesmo do extinto Ministério das Mulheres. O gênero é uma palavra que causa repulsa em legisladores e religiosos. Esses têm o respaldo de pais que querem que seus filhos cresçam saudáveis e “machos”. A machocracia é um legado da tradicional família judaico-cristã brasileira e mantê-lo é uma questão de honra.

A machocracia não quer perder privilégios. Os estupradores não são monstros ou doentes, são homens.

Há uma expectativa da sociedade do justiçamento que esses homens sejam presos e transformados em “mulherzinhas” por outros “machos”. E assim, segue o ciclo das violências, a concreta no caso covarde contra os vulneráveis dentro da prisão e a simbólica no discurso que naturaliza o estupro contra mulheres.

Simone de Beauvoir conhecida por sua frase “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, avaliou seu primeiro livro “O segundo sexo”, depois de lançado, e disse que acrescentaria a frase “Não se nasce homem, torna-se homem”.

“Machos” estupram porque estuprar é coisa desse homem construído socialmente para subjugar e odiar a mulher. Uma sociedade, cuja ideologia dominante é o patriarcado e cuja cultura é machista e misógina, produz estupros. A barbárie é senão produto da civilização machista.



sexta-feira, 20 de maio de 2016

Lideranças femininas são maioria em ocupação do Minc em Florianópolis



Por Paula Guimarães do Portal Catarinas

As mulheres formam a linha de frente na ação de ocupação do escritório regional do Ministério da Cultura, em Florianópolis. A manifestação integra o ato nacional pela restituição do Ministério da Cultura que já ocupa 19 sedes em todo o país. O prédio histórico ao lado do largo da Alfândega foi ocupado, na tarde de ontem, por um grupo formado por artistas, estudantes, professores, agentes da cultura e representantes de movimentos sociais diversos. Várias atrações culturais, aulas públicas e oficinas estão previstas durante a ocupação, entre elas uma roda de conversa sobre feminismos e lutas sociais com Clair Castilhos da Rede Feminista de Saúde e conselheira do Portal Catarinas, amanhã (21/5), às 16h. 

As trabalhadoras e os trabalhadores da cultura têm o apoio dos funcionários do Minc nesta ocupação. “Se não há cultura para os pobres, não haverá paz para os ricos”, afirmou a mobilizadora Elaine Salas. Segundo ela, o prédio fica em estado de ocupação até que o Ministério da Cultura seja restituído. E diz mais: “Se não houver uma posição favorável ao retorno do Minc, nós vamos ocupar escolas, postos de saúde e outros serviços públicos. A cultura está relacionada a todas as áreas sociais."

Escritório segue com atividades normais
Na manhã de hoje, o secretário de Cultura do novo Ministério da Educação e Cultura, Marcelo Calero, informou por meio de uma circular que o escritório deve seguir as atividades normais. Segundo a técnica do Minc, Gabriela Massotti, não há possibilidade de demissão dos funcionários de carreira como ela, o que não diminui a sensação de insegurança institucional. “Ainda não sabemos ao certo o resultado da proposta de enxugamento, se vai haver extinção de representações, remanejamentos de funcionários para outros órgãos ou outras mudanças. A orientação inicial é para que, mesmo com a ocupação, as atividades continuem normalmente”, informa a funcionária.

Gabriela explica que os funcionários continuam atuando nas salas e a ocupação ocorre com atividades dentro e em frente ao prédio. A polícia militar esteve no local e se colocou à disposição para auxiliar em casos de conflito, mas até o momento a ocupação segue de forma pacífica. A técnica explica que trabalhadores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) deram orientações para os manifestantes sobre os cuidados com o prédio tombado.

O movimento de ocupação

A decisão de ocupar o prédio foi feita em uma assembleia, na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), que reuniu alunos e professores das universidades públicas estaduais e federais, além de representantes de várias frentes sociais, entre eles o MST.

Para a atriz e professora de Teatro da Udesc, Bárbara Biscaro, a ocupação deste patrimônio histórico "tão simbólico para a cultura" é uma forma de fortalecer a soberania nacional, com a defesa do acesso a bens culturais que não podem deixar de existir numa sociedade. “País sem cultura é um país formado por pessoas que se calam e não questionam, que só trabalham e ficam em casa assistindo TV. Nosso movimento é contra o pensamento arcaico que quer nos levar para o século passado”, afirma.

A atriz explica que a mobilização só existe porque nos últimos 14 anos houve um fortalecimento da cultura no país com a descentralização de recursos para todos os estados da federação e investimento em políticas de empoderamento das minorias, especialmente da cultura negra, indígena e LGBT. “A população não tem histórico de acesso a bens culturais. Se o ministério fosse extinto no passado talvez a gente não se importasse. Nos últimos anos eles deram um empurrão e a gente se articulou e formou redes. A nossa posição de resistência vem desses anos de construção. É lindo ver várixs alunxs aqui!”

Na opinião da professora, a mídia contribui historicamente para a construção do pensamento hegemônico que só valoriza iniciativas dos grandes centros e criminaliza movimentos sociais. “A grande mídia é em parte responsável pela polarização de pensamentos que ocorre no país. Trata-se de um discurso excludente que coloca áreas sociais de um lado e economia de outro, como se não tivesse nada no meio. Há uma tentativa de criminalização de um movimento civilizatório.”

Bárbara acredita que as lideranças feministas vão fazer a diferença nesse processo de mobilizações. "As ocupações confrontam as bases do sistema patriarcal (e assim da economia), alicerçado na propriedade privada e família", afirma. 

Ela convida todas as pessoas para participarem da ação: "esse é um movimento democrático e contrário à hostilidade, com espaço para a discussão. Chamamos as pessoas que estão indignadas e querem aprender sobre democracia para se integrarem. É um ato pedagógico para todxs."

Acompanhe a programação na página Ocupa Minc SC






domingo, 15 de maio de 2016

Maio Sem Preconceito é marcado pela criação do Conselho Municipal LGBT em Florianópolis




Fotos e textos por Paula Guimarães.

Em 17 de maio, o mundo celebra o Dia Internacional de Combate à Homofobia. Florianópolis tem um motivo para comemorar neste ano com a aprovação pela câmara de vereadores do Projeto de Lei 16.379/2015 que cria o Conselho Municipal de Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – CMDLGBT. A lei foi sancionada pelo prefeito César Souza Júnior, na última sexta-feira, (13). Ele se comprometeu também com a implantação do Plano Municipal de Políticas LGBT.

É o primeiro conselho voltado à luta dessas minorias no estado, depois de oito anos de construção do projeto. As atividades alusivas começaram em 2 de maio e seguem durante todo o mês. “O conselho, a coordenadoria e o plano são o tripé da cidadania LGBT”, afirmou Alexandre Gastaldi do Grupo Acontece Arte e Política LGBT, no I Seminário da Câmara Técnica Municipal LGBT, realizado na tarde do último sábado (14/5).

O seminário teve como encerramento uma dança circular, porém os participantes foram impedidos de dar continuidade pelos guardas municipais que estavam no estacionamento da Guarda Municipal de Florianópolis, local onde ocorreu o evento. "Eles disseram que no local não poderia haver movimentos de corpos", contou Guilhermina Ayres da Câmara Técnica LGBT. 

A implantação do plano, assim como do conselho, e outras ações para o enfrentamento à violência foram discutidas no encontro. Os participantes aprovaram uma moção de repúdio à Medida Provisória nº 726, de 12 de maio de 2016, assinada por Michel Temer, que exclui temporariamente o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos.

Criada em 2015 para monitorar o Plano Municipal de Políticas LGBT, a câmara técnica foi responsável pela organização da conferência municipal, pela revisão do projeto do conselho e agora tem a competência de auxiliar na elaboração do regimento interno.

O conselho será composto por 20 conselheiros, 10 da sociedade civil e 10 do governo. Dalva Maria Kaiser da Coordenadoria da Mulher de Florianópolis, explica que os próximos passos para a implantação serão a criação do fórum das organizações não governamentais para eleger os representantes e a indicação dos conselheiros governamentais pelo prefeito. Com a nomeação, cria-se o regimento interno.

Crimes de ódio e ausência de políticas públicas
Guilhermina Ayres
O projeto para a criação do conselho foi uma iniciativa de organizações da sociedade civil inspiradas no exemplo de outras cidades do Brasil. A falta de denúncias formais e a subnotificação dos crimes são os principais motivos para a ausência de políticas públicas direcionadas à comunidade. “O conselho terá a função de fiscalizar e monitorar políticas públicas. Há muitos crimes relacionados ao preconceito, a grande questão é que eles não são descritos como tal, o que leva a uma falácia de que em Florianópolis não há ataques direcionados à comunidade LGBT”, afirma Guilhermina. 

O ponto alto das discussões do seminário foi a dificuldade de denunciar os crime, assim como relacioná-los ao ódio de gênero, especialmente assassinatos. 

Paulo Roberto Andrade
Entre os motivos estão a vergonha por parte da vítima ou da família, o falho acolhimento pelos órgãos públicos, a sensação de impunidade, a negativa dos serviços policiais de se deslocarem até os hospitais e o medo de retaliação pela polícia, que seria responsável por grande parte das agressões.

O escrivão Paulo Roberto Andrade lembrou o assassinato recente, no sul da ilha, de um homem que foi amarrado e arrastado, com indicativo de crime de intolerância, mas que não foi classificado dessa maneira, nem mesmo a questão foi levantada pela mídia.

Margarethe Hernandes


Outra forma de discriminação vem da própria justiça ao indeferir pedidos de casamentos homoafetivos, como lembrou Margarethe Hernandes da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero da OAB/SC. 

Ela se colocou à disposição para auxiliar em casos de promotores e juízes que não acatam a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), bem como para outras formas de preconceito. 


Lirous Ávila, representante da Associação em Defesa dos Direitos Humanos (Adeh) e do Fórum da Diversidade, falou ainda sobre os obstáculos aos encaminhamentos das denúncias do disque 100 (direitos humanos) devido à falta de mão de obra e de abrigo às pessoas em situação de violência. “Muitas dessas denúncias são guardadas na pasta. Em alguns casos, temos que levar a vítima para nossas casas porque em Florianópolis não há nenhum abrigo que funcione”, revela. 


Violência institucionalizada 
Uma pesquisa realizada em 2013 pela Adeh, ajudou a sinalizar para os tipos de violência, negligência e discriminação cometidas contra as pessoas que não se enquadram na ordem heteronormativa e deu sustentação à criação do conselho. Das pessoas entrevistadas, 34,5% relatam já terem feito alguma denúncia de violência, dessas 64% a fizeram junto à polícia. 

Lirous Ávila

O levantamento indicou que parte dos agentes de violência identificados são operadores das políticas públicas, em especial de educação (31%) e saúde (20%), seguidos da segurança pública (26,6%) e do serviço de assistência social (3,5%). 

O trabalho destaca que com freqüência era necessário explicar para as pessoas o que significa violência psicológica e, não raro, foi constatado que muitas não entendiam o que tinham vivenciado como uma forma de violência. “Isso é normal” e “isso sempre acontece na escola” foram frases constantes. O relatório constatou que há práticas que são “naturalizadas” e “banalizadas” a tal ponto que não são significadas como formas de violência. 

Guilhermina explica que as organizações já atuam na capacitação de profissionais para um atendimento humanizado, especialmente nas escolas, com palestras sob demanda, e que o plano municipal de políticas LGBT propõe a inclusão da capacitação de funcionários no plano de administração de escolas.

Avaliação e propostas de enfrentamento à violência


Alexandre Gastaldi destacou como avanço a recente autorização do uso de nome social no serviço público pelo decreto da presidenta Dilma Rousseff. 

O ativista que esteve à frente da mobilização para a criação do conselho estadual explica que o projeto de lei, elaborado pelas organizações, havia sido encaminhado pelo governador do estado Raimundo Colombo à Assembléia Legislativa, porém com várias modificações, entre elas a não paridade no número de conselheiros, dando vantagem ao governo. Depois de alterado pelas organizações, ele foi encaminhado à votação, mas por falta de quórum, a sessão foi cancelada. “Os próprios deputados da base governista boicotaram a aprovação com a ausência nas sessões de votação”, explicou.


A advogada Alcenira Vanderlinde, representante da Secretaria de Estado da Assistência Social, Trabalho e Habitação avaliou que a 3ª Conferência Estadual de Direitos LGBT, realizada em março desde ano, teve abrangência mais ampla do que as anteriores, dividindo-se em municipais, livres e regionais, entretanto sem atingir a Região Serrana. 


Para ela, a conferência demonstrou o protagonismo dos movimentos sociais e a pouca participação de representantes governamentais. “As conferências foram construídas coletivamente pelas organizações. Tivemos participação elevada e alto grau de debate. Existe uma receptividade da cassa civil de retomar o processo para a criação do conselho estadual. A luta é grande. Não podemos ir para o gueto. Temos que nos articular, construir pontes”, destaca.

No Brasil

O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes no país, segundo pesquisa da organização não governamental Transgender Europe (TGEU), rede europeia de organizações que apóiam os direitos da população transgênero.

O último Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil, publicado, em 2012, apontou o recebimento, pelo Disque 100, de 3.084 denúncias de violações relacionadas à população LGBT, envolvendo 4.851 vítimas. Em relação ao ano anterior, houve um aumento de 166% no número de denúncias – em 2011, foram contabilizadas 1.159 denúncias envolvendo 1.713 vítimas. Os números podem ser ainda maiores já que os casos de violência contra travestis e transexuais são subnotificados.