segunda-feira, 25 de julho de 2016

Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha: entrevista com Jeruse Romão





Por Cristiane Mare*, colunista Catarinas.

Hoje, 25 de julho, é o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Comemorar essa data é nos permitir o não esquecimento, é reinstaurar nomes, memórias, movimentos e atividades intelectuais, de corpos silenciados, pois nos educaram na crença que não possuímos contribuições na construção cultural e social de nossa sociedade branca e patriarcal. Nessa incessante exploração de mulheres e homens brancos que nos desejam mudas e intimidadas, pois assim torna-se mais fácil a tarefa da tradução e representação.  E do enfrentamento aos homens negros, pois nem todos foram capazes de compreender que a liberdade da qual incessantemente buscamos, só poderá ser alcançada diante uma humanidade partilhada. Diante este contexto se faz necessário, evidenciar e negritar as contribuições de nossas mulheres, representá-las, pois na medida que habilitamos essas vozes asfixiadas, refutamos a memória coletiva do não lugar das mulheres negras, de um imaginário que nos coloca universalmente dentro do inenarrável, assim como a constante emergência de avançarmos e pontuarmos nossas agendas em torno de políticas públicas. Desse modo, entrevistamos a professora mestra Jeruse Romão, militante histórica da luta pela emancipação da população afrodescendente, nas palavras da professora Jeruse: "Ser militante não é elogio. É necessidade de impor-se diante das desigualdades com as quais nunca me conformei." 

Professora Jeruse Romão, recentemente pesquisando sobre biografias  percebi, o quanto o passado e o presente dialogam continuamente, isso parece ser seu caso. Desse modo, conte-nos um pouco sobre você, e seu contexto histórico e social?
E muito! Nasci no ultimo mês de 1960. Experimentei viver a juventude   entre as efervescentes décadas de 1970 e 1980. Culturalmente era outra Florianópolis, especialmente para a população negra que ainda mantinha muito de seu legado cultural preservado e seus territórios também. Pude conviver com pessoas negras da geração anterior e com seus conteúdos de referência para a educação, a cultura, a religião (Umbanda). Pude conviver com pessoas brancas com quem estudei e que desejavam outra sociedade. Fui a primeira universitária da minha família, fiz pedagogia na Faculdade de Educação da UDESC. Tive acesso a leituras fundamentais para que me fizessem entender que aquilo que estava dentro de mim encontrava pares, milhares deles, aqui fora. Eu nasci do jeito que sou hoje. Ser militante não é elogio é necessidade de impor-se diante das desigualdades com as quais nunca me conformei. (Quando criança, eu sempre torcia pelos indígenas nos filmes da sessão da tarde ). Hoje eu quero que a juventude negra não se desconecte do passado. Passado não é só a escravidão. Passados são os conteúdos das gerações pós- escravidão que nos mantiveram ligados enquanto grupo e identidade. Eu quero que lembremos dos/as pioneiros/as. Dos que atravessaram as barreiras que a Casa Grande gostaria de manter perpetuada como linha de nossa imobilidade. O meu contexto é pontuado por muitos olhares e experiências com os espaços da cidade. 

A senhora é bastante reconhecida em sua atuação na educação. Fazendo-nos lembrar de ícones muito importantes para a educação e para a melhoria de vida da população afrodescendente, como a professora e deputada Antonieta de Barros, a professora Maria Laura de Joinville, a Clotilde Lalau da cidade de Criciúma, e mais recentemente as fundadoras da Associação de mulheres negras- Antonieta de Barros (AMAB). Portanto, o que lhe fez optar por esse caminho?
Obrigada pela deferência. Minha mãe, Zulma Silva Romão foi professora e das boas. Quando lecionou no MOBRAL nos levava a noite com ela como companhia. E eu me via pegando na mão dos adultos que ela alfabetizava para ensinar-lhes as letras. Eu tinha nove anos. Tudo o que eu aprendi na educação, como professora, acadêmica e pensadora iniciou-se ali. Minha mãe foi discípula de Antonieta de Barros. Tive uma irmã, falecida, com esse nome, tamanha a admiração de minha mãe por essa professora. Sou herdeira desse legado. Minha tia Valdionira, da AMAB foi professora. E foram professoras imbuídas de muito compromisso para com seus alunos e suas alunas, brancos e negros e, sobretudo, com os/as filhos/as dos/as trabalhadores/as. Estudei em uma escola cuja diretora foi outra Amabiana, Dona Uda Gonzaga. Educação para essas mulheres significava compromisso para a emancipação. Aprendi lições importantes e definitivas com elas. Com essas mulheres negras. Nunca desisti de ser mediadora e de conduzir nosso povo ao acesso de seus direitos. Na câmara de vereadores, assessorando o vereador Márcio de Souza, pesquisei e formatei o projeto de lei que tornou obrigatório o ensino de conteúdos afro-brasileiros nas escolas do município de Florianópolis. Desejei que a escola compreendesse que a nossa ausência, fisicamente e através de seus conteúdos nunca a fariam igualitária. Faço parte da geração dos primeiros negros/as brasileiras que instituiu essa política em âmbito regional, até que chegássemos a Lei 10.639/03. Desafiamos muitos contextos. Os conservadores não desejavam esse conteúdo porque diziam que éramos todos iguais diante da lei ou “ diante de Deus”. A esquerda dizia que o problema era de classe. Mas como o poder transforma, tínhamos um vereador e essa condição construída por nós negros/as impôs um exercício de mudanças em Florianópolis e nos tornamos conhecidos e reconhecidos nacionalmente.

A senhora, junto com a Profa. Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, assim como Amauri Mendes Pereira, são intelectuais que compõe, o campo denominado pensamento negro sobre educação. Comente-nos um pouco das contribuições desse campo de estudos para a educação brasileira.
A categoria “ Pensamento Negro em Educação” foi cunhada pela Profa. Dra.  Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, à época, professora da UFSCAR. Eu era coordenadora do Programa de Educação de uma entidade negra ainda atuante aqui em Florianópolis, o Núcleo de Estudos Negros (NEN) e na época eu já trazia discussões sobre a História da Educação do Negro (tema que organizei em um livro em 2005, pelo MEC) e sobre a necessidade de se pensar que os modelos e estruturas de pensamento do universo branco não poderiam ser simplesmente reproduzidos. Que a epistemologia negra precisaria ser exercitada. Eu lia Frantz Fanon, Gramsci, Steve Biko. O NEN contava com quadros negros e jovens muito ativos- Lino Peres, Paulino Cardoso, Ivan Lima, Dora Lucia Bertúlio, Aloisio dos Reis, Nara Nascimento, Maritza Oldremann, Marcio de Souza, os/as fundadores/as, e depois João Carlos Nogueira- que com trajetórias acadêmicas muito bem-sucedidas, traziam para o grupo um arcabouço que nós, jovens intelectualizados/as sabíamos aplicar nos nossos discursos e formulações teóricas e políticas. Eu sempre cuidei do campo da educação. Como disse antes, eu nasci nele. No início esse campo foi pouco visto... sabe né, educação não tinha status e era coisa de mulher. Tudo convergia para se pensar, na lógica da política, como uma área de pouco prestigio diante das outras. Mas não é que acabou virando carro chefe da organização?  Eu, Ivan Lima e Sonia Silveira saímos a campo para fundamentar a ideia de que existe um pensamento branco, um pensamento indígena e um pensamento negro, se você considerar as três matrizes fundantes do Brasil. Não considerar isso é, como diz Jayro de Jesus, consolidar o eurocentrismo e adotar o epistemicídio como método. Frantz Fanon pergunta, nos condenados da Terra: “o que  pensa o homem? O que pensa o homem negro”? Foram essas perguntas que me balizaram. Fomentar, perguntar e responder o que pensam os negros e as negras sobre a educação. Ai está pois, a essência do pensamento negro em educação no Brasil.. pensamentos na verdade, escolas teóricas e metodológicas das mais diversas, tais quais as das etnias brancas e indígenas.

Tenho visto, que a senhora há bastante tempo vem atuando em defesa ao desenvolvimento de políticas públicas para as mulheres negras. Assim, por que nunca optou, pelo feminismo negro?
O campo da educação me absorveu por demais e ele sempre teve como sujeitos as mulheres, de todas as etnias, classes sociais e formação acadêmica. Eu sempre estive antenada com as pautas das mulheres negras e seu percurso de trânsito ideológico... do nascer da pauta para as mulheres negras até a pauta para a consolidação do feminismo negro. Eu penso que na verdade, sempre me coloquei como feminista. Fiz escolhas feministas o tempo todo. Lutei para que não nos chamássemos de “tia” nas escolas, lutei para que as mulheres nas nossas organizações negras fossem dirigentes. Eu nunca fui coordenadora do NEN. Nunca me deixaram. Me desliguei da organização também por causa disso. Fui eu quem trouxe o maior financiamento para o NEN por causa da educação- o da Fundação FORD- mas nunca fui coordenadora. Eu criei um coletivo de mulheres negras no NEN que foi extinto pelos homens como uma ameaça a seu status de comanda, como se significasse o enfraquecimento de seus poderes. Eu não tinha pauta certa. A conjuntura era a determinante. Não é como hoje que temos pautas.  Eu era feminista sendo eu. Lutando contra a dominação masculina em todos os contextos. Eu fui feminista, quando engravidei, tive filho e com quarenta dias de parida voltei para as minhas funções de chefe de gabinete na Câmara. Minha mãe cuidou de meu filho. Meu ex-marido apoiou, as mulheres brancas repudiaram dizendo que eu estava quebrando a interpretação de que teria o direito legal de uma licença maternidade de 120 dias, que isso era contra o movimento.  O Márcio de Souza quando me viu no gabinete, me disse: “ Mulher o que estas fazendo aqui?”. Eu voltei para cuidar da agenda política que envolvia os direitos da população negra da cidade. As mulheres brancas não entendiam que muitas negras faziam e fazem a mesma coisa.  Você diria que a Antonieta de Barros não foi feminista mesmo que no tempo dela não se formulassem teorias feministas? Óbvio que tínhamos uma cultura que gostaria que você observasse, a minha geração intencionalmente não ia ao salão de beleza, não pintava unhas, algumas não se depilavam e usávamos roupas que não demonstravam as nossas formas físicas como forma de afirmação de que não éramos, as mulheres, corpos consumíveis.  Estava pensando nisso agora. Óbvio que isso não é conteúdo para falar do feminismo da forma como o pensamos hoje... mas me lembro que tínhamos posição de sermos aceitas pelo nosso conteúdo e não pela nossa “ bonequisse” burguesa. Meu Deus, eu tinha pernas e axilas tão cabeludas que dariam inveja às sobrancelhas de Frida Khalo! Hahaha... O que eu quero dizer é..se a história é evolutiva, qual seriam os caminhos históricos de nosso feminismo? Seriam somente os teóricos? Os culturais de cada geração e grupo étnicos não deveriam ser levados em conta? 

No atual momento político, percebemos que a luta de 30 anos de defesa e desenvolvimento da democracia, foram riscados em algumas semanas do governo Temer, e outros estão sendo eliminados. Recentemente a senhora contribui para a realização da Marcha da Negritude, como observa o desafio dos movimentos sociais, em especial o movimento negro?
Estou desolada. Mais nenhum direito se encerra. O Lula e a Dilma, se cruzarmos os mapas regionais e étnicos, saberemos, foram eleitos pelas regiões mais pobres e menos brancas do Brasil. Olhe o mapa e veja. Foi assim. A resistência contra a Dilma está alinhada aos movimentos de brancos, de direita, da Europa. Todos contra os direitos e a cultura do que não é branco (na educação, na religião, nos direitos humanos, entre outros).  Contudo, as lideranças de resistência não fazem essa leitura. A Marcha da negritude mostrou isso (Temos uma carta manifesto).   Eventos acadêmicos não impedem a policia de atacar meus universitários negros, minhas universitárias negras. Voltamos ao debate inicial. Classe ou raça? Fizemos uma Marcha num sábado. Por que era a Marcha do proletariado negro. Marcha da folga dos dias do trabalho. Quem foi? Quem foi? Choveu.. o dia foi chuvoso.. tivemos quase mil negros..fazer manifestação num dia de semana e dizer que não vamos é fácil..ainda somos a ponta da mão da limpeza.. da dependência do salário.  Mas fizemos no dia da folga dos operários negros, das operárias negras... E não vimos os brancos e as brancas livres caminhando conosco. Não sei como é isso não. Tenho 55 anos e quase não durmo. Tenho um celular velho que dorme comigo. Eu durmo com Fanon, com a carta que o Nogueira fez para a Marcha, com os Whats dos meus filhos e com as mídias do  movimento negro. Durmo pronta para levantar e correr. O nosso povo é proletário/a. Achei bonito eles e elas na Marcha. Poucos/as de nós somos liberados/as para fazer ou dizer o que pensamos. Eu sou liberada por minha consciência. E pago um preço bem caro por isso. No futuro quero o  povo preto livre para lutar, mas  que não seja escravo como eu, que não tem um trabalho político para reafirmar seu discurso e pagar suas contas no final do mês. Axé!


Cristiane* é mestra pela PUC/SP em História Social e graduada em Letras Português - Espanhol, pela Unioeste (Universidade estadual do oeste do Paraná).Atua como pesquisadora associada no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina e no grupo de estudos Cecafro da PUC/SP. Trabalha com a formação de professores para a Educação das Relações Étnico Raciais (ERER). É secretária de mulheres da UNEGRO (União de negras e negros pela igualdade) e integrante do Coletivo de mulheres negras: Pretas em Desterro.


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