quinta-feira, 28 de abril de 2016

Epidemia de zika vírus reacende debate sobre a violação dos direitos humanos das mulheres no Brasil

Jurema Werneck

Ativistas, jornalistas, médicas, sanitaristas e profissionais de diversos setores sociais participaram do 9º Seminário Mulher e Mídia, em São Paulo, nos dias 22 e 23 de abril, para buscar respostas à desinformação que envolve o tema “zika vírus” na sociedade, com o desafio de trazer a mulher para o centro do debate, denunciando a violação de seus direitos mais essenciais nessa epidemia. Com o tema “Mídia, zika e os direitos das mulheres”, o encontro, realizado pela Agência Patrícia Galvão, em São Paulo, também buscou apontar estratégias de comunicação para denunciar o racismo, sexismo e classismo atrelados à epidemia e suas consequências sobre corpos e mentes das mulheres mais vulneráveis socialmente. Em tempos de discussão sobre a democracia brasileira, especialistas relacionaram a falta de autonomia das mulheres à existência de um estado autoritário. Abaixo um apanhado das falas de algumas participantes do debate.

“A partir desse seminário vamos ter uma possibilidade de montar uma estratégia mais completa para fazer frente à epidemia do zika vírus no Brasil”, afirmou Nilcéia Freire, representante da Fundação Ford no Brasil.

Marisa Sanematsu, diretora de conteúdo da Agência Patrícia Galvão, falou sobre a situação de insegurança vivida pelas mulheres, desde que os primeiros casos foram descobertos no Nordeste. “Quem são essas mulheres no olho do furacão? A imprensa não diz o segmento do qual fazem parte, que são negras e pobres. Para a mídia, é como se a mulher fosse mais um vetor. Culpam-na por não se cuidar ou engravidar. Quando falam em políticas publicas, o foco é o bebê”, afirma.

A sanitarista Tânia do Lago, professora de medicina social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, explica que toda infecção viral tende a afetar mais as mulheres e que em quase todos os países desenvolvidos, cabe à mulher decidir se mantém ou não a gravidez, especialmente quando a doença atinge o feto. Para ela, a epidemia aumenta o fosso entre mulheres ricas e pobres que não podem contar com uma assistência ágil no SUS e tampouco com o teste. “A mídia fica refém do que está disponível, não há um papel militante do jornalista em busca da verdade dos fatos. Nenhum infeliz de um jornalista é capaz de perguntar ‘e o teste?"

Fernanda Lopes, representante no Fundo de População das Nações Unidas no Brasil, diz que há relatos da existência do zika desde 2014, mas somente em fevereiro de 2016 foi decretado estado emergência. “Pediram para as mulheres da América Latina não engravidarem num desrespeito ao direito reprodutivo que é inalienável. Para não engravidar é preciso ter garantias.”

Para Juliana Neves, jornalista na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a mulher deve estar no centro do processo, não somente como vítima, mas protagonista. “Os espaços participativos estão sob sério risco nesse momento de crise política, o que reforça a importância das mulheres como protagonistas no controle social.”

Racismo e sexismo estruturantes
Jéssica Hipólito
“Quando falam da mulher negra, nos tratam como um recorte. Nós não somos um recorte, somos a maioria da população brasileira”, afirma Jéssica Hipólito, do Blog Gorda e Sapatão.


Isabel Clavelin, professora da Universidade Católica de Brasília (UCB) e assessora de comunicação da ONU Mulheres, lembra que o combate à discriminação é uma das garantias do código de ética do jornalista. Enfatiza que a não inclusão do racismo e sexismo no debate colabora para uma sociedade sem história. “Vemos narrativas que são estruturadas dentro de um discurso político-ideológico de modo a impedir as falas de mulheres no debate público. Essas mulheres têm que ser ouvidas e os profissionais precisam contar. Sem narrativa, não há mobilização.”

Mesmo com 30 anos de epidemias de dengue no Brasil, a desassistência aos direitos humanos mantém-se, agora, também com a zika e chikungunya, como analisa Jurema Werneck, médica e coordenadora da ONG Criola.  Jurema acusa o Ministério da Saúde de racismo institucional por não incluir a raça na ficha de notificação dos casos e lembra que a grande maioria das mães atingidas é miserável. Segundo ela, além de não questionar esse tipo de sonegação, a mídia replica uma narrativa que silencia as mais de 60 milhões de mulheres negras no Brasil. “A mídia constitui-se como o braço do racismo que chega na casa das pessoas todos os dias. O desafio está na busca dessa mídia da transformação que trate do direito ao direito”, afirma.

Para Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no Brasil, esse é um momento especialmente difícil para as mulheres jovens em idade reprodutiva pela restrição no acesso à informação, contracepção e aborto. “Maternidade qualquer que seja é decisão das mulheres e não pode ser imposição. Tempos de zika confrontam com problemas estruturais da sociedade, perpassados pelo racismo e sexismo”, afirma.

Descentralização da mídia
Cláudia Colluci
”A mídia vive uma crise sem precedentes que tem como resultado o enxugamento das redações, conforme Cláudia Colluci, repórter da Folha de São Paulo. Ela diz que os tempos de zika são bem diferentes da época do surgimento da Aids, quando havia mais profissionais em campo. “Ficamos reféns do que chega, de dados oficiais e boletins, muitas vezes falhos. Precisamos do movimento de mulheres, não temos braços para sair em busca de cases. A mídia tradicional tem se pautado em outras mídias, é preciso que elas ganhem força.”


A defensora pública Ana Rita Prata falou sobre a importância das mídias alternativas e movimentos sociais para desconstruir o discurso técnico e levar a discussão para a periferia. “A falta de acesso à justiça é uma violação de direitos. O patriarcado tem interesse em manter o ciclo da violência, só com acesso à justiça ele pode ser quebrado”, afirma.

Catalina Navarro, colunista de periódicos na Colômbia e México, lembrou que as mulheres formam a maioria da população mundial, mas ainda são tratadas como minorias. “Como fazer para não ficar grávida se não temos autonomia reprodutiva? Não temos autonomia porque não somos tratadas como pessoas.” Ela aponta para a necessidade dos jornais abordarem a epidemia pautados pelos direitos humanos das mulheres. “Se não tem perspectiva de gênero não é jornalismo”, pontua.
Síndrome congênita do zika vírus e desinformação

Nova síndrome congênita e a desinformação


Ana Van Der Linden
Maira Sarauê Machado, diretora de pesquisa do Data Popular, apresentou uma pesquisa com mulheres vítimas da zika no Nordeste que revelou a desinformação sobre a síndrome congênita. A maioria das mulheres pesquisadas não havia planejado a gravidez e acreditava que a “doença da cabecinha” estaria ligada a um lote de vacinas vencidas. “A falta de informação acarreta baixa mobilização à prevenção”, destaca Maira.


A neurologista Ana Van der Linden do Instituto de Medicina Integral do Recife explica que o primeiro caso de bebê com a síndrome apareceu no início de setembro. Iniciou-se uma investigação hereditária até que outros casos apareceram, apontando ligação com o zika vírus. A medição da cabeça do bebê (perímetro cefálico) é uma das formas de avaliação da microcefalia, porém existem outras malformações da síndrome. “Microcefalia não é doença é um sinal que se exterioriza porque o cérebro não cresce ou cresceu e, depois de afetado pelo vírus, desaba”, explica a médica.

A microcefalia é somente um dos sintomas da síndrome congênita do zika vírus e, segundo especialistas, essa nomenclatura faz toda a diferença para a distinção de outros casos de microcefalia menos severos. “A síndrome congênita do zika vírus se caracteriza por uma grave e irreversível agressão ao sistema nervoso central ou ao crânio”, explica o médico Thomaz Gollop, coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA).

O médico apontou para a desinformação provocada pela mídia e Ministério da Saúde, principalmente por não distinguirem os tipos de microcefalia: a primária, determinada pelo gene, e a secundária, consequência de agente externo como a sífilis e, neste caso, o zika vírus. “Vivemos um problema grave de omissão de informações. Essas mulheres não têm noção do que vem pela frente: maridos que abandonam e crianças que choram 20 horas por dia. O governo diz que vai dar suporte com fisioterapeuta e fonoaudióloga, mas sabemos como médicos, que para boa parte das crianças a situação é irreversível”, assinala.

Suzanne Serruya, diretora do Centro Latino-Americano de Saúde Materno Infantil da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), afirma que existe uma epidemia de rápida propagação em mais de 60 países, entre eles 35 americanos. “Espero que a zika não vire sífilis, uma doença de mulher pobre e negra que não tem acesso a serviço de saúde”, afirma a médica. Como o vírus da zika não apresenta sintomas, a mulher pode contraí-lo sem saber, tanto por meio da picada do mosquito quanto pela relação sexual. Ainda não há prevenção e tratamento específicos. “A síndrome congênita do zika vírus é uma nova infecção perinatal, transmitida de mãe para filha e filho, porém com um novo vetor, o aedes aegypti. Vetor que voa é mais difícil de controlar.”

Autonomia reprodutiva e a democracia
Débora Diniz
O documentário “Zika” com entrevistas de mulheres vítimas da zika na Paraíba foi exibido durante o seminário. A diretora Débora Diniz integra o grupo de especialistas que elabora uma ação ao Supremo Tribunal Federal para a garantia de direito ao planejamento familiar, proteção social e aborto legal. Uma ação similar levou à liberação do aborto nos casos de anencefalia em 2012. “O litígio é um caminho legítimo quando direitos individuais são violados. Falar em epidemia é falar de sofrimento e de riscos à saúde da mulher. É preciso garantir direito ao aborto enquanto durar a epidemia, não porque a zika causa microcefalia, mas pela tortura imposta às mulheres”, afirmou Débora.


No filme, fica evidente que a criminalização do aborto impõe constrangimento e limitação à vida das mulheres. O Brasil tem a legislação mais restritiva do mundo quando se trata de direitos reprodutivos, como afirma Jacqueline Pitanguy, coordenadora executiva da ONG Cepia. Conforme a coordenadora, o direito de decidir por manter ou não uma gravidez é marco de um país democrático e pluralista. “É vergonhoso o Brasil não ter alcançado a meta do milênio relacionada à mortalidade materna. A legislação em vigor, além de comprometer a vida das mulheres, não salva embriões. Direito reprodutivo é uma questão de justiça reprodutiva”, afirma.

Sonia Corrêa, coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, assinala que a negação do direito à autonomia reprodutiva no Brasil tem correlação com a crise democrática atual. Ela lembrou a juíza da Suprema Corte Americana, Ruth Ginsburg, que defende a autonomia reprodutiva como condição inegociável para a participação das mulheres na esfera pública, tanto no trabalho quando na vida política.

A pesquisadora explica que as leis que criminalizam o aborto no mundo têm origem religiosa, derivam de normas elaboradas pelos primeiros estados europeus no século XIX. “Essas leis impuseram restrições radicais à habilidade das mulheres de tomar decisões razoáveis sobre a vida sexual e reprodutiva. São conjuntos de estratégias disciplinares para converter as mulheres em dóceis, recatadas e do lar, perfil que está em moda no Brasil, apesar de ter mais de 200 anos.”
São mais de 7 mil casos notificados e 1.198 casos confirmados de síndrome congênita de zika vírus, que se concentram nos estados de Pernambuco, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Norte, Maranhão, Ceará, Piauí, Alagoas e Sergipe. O último informe epidemiológico é de 23 de abril e está disponível aqui

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